O ano era 1954 e o mundo do futebol tinha dono. Os Mágicos Magiares, do Major Galopante Ferenc Puskás, iriam ser campeões mundiais de forma fácil. Depois do Maracanazzo de 1950, com certeza o estádio Wankdorf, em Berna, iria coroar a melhor equipe, a Hungria, treinada por Gusztáv Sebes.
Os húngaros não perdiam há 32 partidas, incluindo a vitória por 6×3 sobre a Inglaterra, em Wembley, naquele que seria denominado o “Jogo do Século”. Na primeira fase da Copa, os alemães tinham sido massacrados pelos húngaros: 8×3.
Assim que o juiz inglês William Ling iniciou a partida, os magiares, como de costume, fizeram, antes dos dez minutos, 2×0, gols de Puskás e Czibor, mesmo sob forte chuva. Quem dormiu naquela hora e acordou 90 minutos depois não poderia crer no que aconteceu. A maior zebra da história das copas, maior até que aquela de 1950, tinha acontecido: Alemanha 3×2 Hungria.
Os alemães denominam a partida como “O Milagre de Berna”, e fizeram até um filme com esse título. Mas, até que ponto a vitória foi mesmo milagrosa? É o que vamos analisar aqui.
Na primeira fase daquela copa, o regulamento era esdrúxulo: as equipes jogavam em grupos de quatro times, porém com duas partidas por equipe, e uma repescagem se dois times empatassem no segundo lugar do grupo. Assim, quando jogou contra a Hungria e tomou 8×3, os alemães estavam com o time bem desfalcado e com um único objetivo em mente: machucar Puskás.
A missão foi cumprida. Após uma entrada por trás de Liebrich, Puskás machucou o tornozelo, ficou fora das partidas contra Uruguai e Brasil, duas “guerras” para os húngaros, e jogaria a final bem longe de suas condições físicas ideais.
A chuva que caiu em Berna no dia da final foi outro componente fundamental para o resultado da partida. Ora, os húngaros encantavam o mundo com seu toque de bola refinado, tal qual o Barcelona atual. Com poças e lama em todo o gramado, ficava difícil tocar a bola, e o jogo mais físico dos alemães poderia nivelar a partida. Além disso, Adolf Dassler, fundador da Adidas e componente do grupo alemão, tinha produzido chuteiras com travas de náilon parafusáveis, fazendo com que seus jogadores tivessem um equilíbrio bem maior em campo.
Quando a partida final começou, os gols de Puskás e Czibor pareciam apenas confirmar o que todos já sabiam. Mesmo empurrados por 30.000 torcedores que tinham viajado da Alemanha, os “desafiantes” pareciam atordoados, mas aos poucos começaram a entrar no jogo e buscar o ataque, diminuindo aos dez minutos de jogo com gol de carrinho de Morlock. Helmut Rahn igualou aos 18 e, pela primeira vez, a partida tomou cara de decisão.
Após o intervalo, a Hungria voltou atacando com tudo. Kocsis acertou a trave e Kohlmeier salvou bola de Puskás em cima da linha. O goleiro Toni Turek ainda fechou o gol, até que a Hungria cansou e os alemães tiveram chances claras de gol, principalmente com Fritz Walter. O vídeo abaixo, por exemplo, mostra uma defesaça do goleiro alemão.
Na segunda metade do segundo tempo, o melhor preparo físico alemão era visível. A Hungria tinha vindo de duas batalhas, contra os campeões e vices mundiais da época (Brasil e Uruguai), enquanto a Alemanha tinha vencido jogos mais fáceis.
A seis minutos do fim, o inacreditável: de perna esquerda, Helmut Rahn acertou o canto direito baixo do goleiro Grosics. Era a virada alemã e o Milagre de Berna acontecia…
Porém, naquele dia, os milagres não eram bem milagres. Puskás recebeu em posição legal e empatou o jogo, a um minuto do fim, mas o juiz preferiu anular.
Na última chance do Time de Ouro, Czibor recebeu frente a frente com Turek, que fez grande defesa. Não haveria tempo para mais nada. A Hungria estava arrasada. Os magiares tinham perdido a Copa.
Embora a Hungria tenha perdido mais chances, taticamente a Alemanha foi melhor naquela partida, anulando Hidegkuti e sabendo contra-atacar com qualidade. Um último trunfo veio do técnico Sepp Herberger. Quando chovia na Suíça, a Alemanha ia treinar, visando uma possível final nessas condições.
A história poderia ter acabado aí, não fosse um porém: há grande chance dos alemães terem se dopados para aquela partida.
Em 1957, Puskás foi o primeiro a declarar, em entrevista dada à France Football, que os alemães teriam se dopado. O fato foi reforçado por declarações de Walter Broennimann, que trabalhava no estádio e afirmou que foram encontradas seringas e agulhas no vestiário alemão.
Em 2004, uma televisão estatal de Berlim acusou o doping, prontamente negado pelo porta-voz da DFB, Harald Stenger, que afirmou que as seringas encontradas foram utilizadas apenas para injeção de vitamina C, que não está na lista de substâncias proibidas. O mesmo discurso foi dado pelo médico da equipe na época, Franz Loogen. Os jogadores também se defenderam; Omar Walter disse que não sabia de nada, enquanto Hans Schäfer disse ao Bild que o médico da equipe forneceu apenas fortificantes.
Em 2010, Erik Eggers, historiador esportivo, conduziu um estudo na Humboldt University, em Berlim e diz ter evidências de que houve injeção de metanfetaminas, no caso o pervitin, em vários atletas alemães daquela partida. O pervitin foi utilizado por vários soldados alemães na 2ª Guerra, como estimulante para evitar fadigas.
Nos últimos dias, o jornal Süddeutsche Zeitung publicou trecho do relatório final do estudo, intitulado “Doping na Alemanha de 1950 até hoje”. Com isso, a discussão sobre aquela copa voltou à tona. Em tal documento, constam ainda informações de uso de efedrina em jogadores na final da Copa de 1966, contra a Inglaterra. Mais do que isso, suas 800 páginas apresentam um programa de doping apoiado e sustentado pelo governo alemão, que teria começado nos anos 40.
Infelizmente, doping no esporte de alto rendimento sempre aconteceu. Hoje, mesmo com técnicas refinadas, muitos atletas passam ilesos pelos exames, ou tem resultados escondidos por suas federações, que buscam o dinheiro e a fama mais do que o espírito esportivo.
Em uma opinião muito pessoal, acho que uma série de fatores extracampo contribuiu para aquele resultado, mas mesmo assim os húngaros venceriam aquela partida se não fosse o eventual e provável doping de seu adversário. Mesmo com os alemães acertando em tudo taticamente, tendo sorte durante o jogo, um clima favorável e equipamentos melhores, precisaram de uma “ajudinha” do juiz para ganhar a partida no tempo normal.
Infelizmente, ou felizmente, o futebol não é feito de “se”, e uma das maiores equipes da história, se não a maior, nunca foi campeã mundial. Quando se visita o Stade de Suisse, sucessor do Wankdorf, um monumento eterniza o placar daquele jogo: Hungria 2×3 Alemanha.
Do céu, o Major Galopante vê seus compatriotas, hoje uma seleção fraca, lutarem por resultados melhores e pelo sonho de disputar uma Copa do Mundo. Aqui na Terra ou lá de cima, Puskás, Kocsis, Hidegkuti, Bozsik, Czibor, Tóth, Grosics, Sebes, Lóránt, Buzánszky, Lantos, Budai e Zakarias sempre se perguntarão: será que perdemos para um time de futebol ou para uma equipe de médicos?