O Brasileirão deste ano está esquisito, quase estrambótico. O campeão do ano passado ficou irreconhecível. Começou tropeçando, equilibrou-se mais ou menos, ainda vacila. De modo nenhum se assemelha ao Fluminense de 2012. O poderoso São Paulo formou um time de luxo e vestiu a roupa da miséria, com que desceu aos infernos rodopiando, para uma longa temporada de aflições. Agora se esforça por voltar à luz. Queira Deus retorne mesmo da triste jornada, tome alento, ressuscite com as bênçãos de Muricy e não esmoreça mais.
O Vasco vai a pique em sucessiva tormentas, naufraga em riachos e poças, afoga-se no raso, bacalhau atordoado com vocação de traíra. Espero que o Almirante saia desse absurdo mar de pesadelos. Sua trajetória tem sido esquisita. Fez uma boa partida contra a melhor equipe do campeonato, o Cruzeiro. Embora tenha perdido, lutou bem e deu esperanças aos torcedores. Depois afundou, dando a impressão de ter gasto a pilha toda naquele jogo.
O Flamengo patina, tomba, se levanta e torna a cair, feito urubu capenga, de asas murchas, atrofiadas. O Corinthians, campeão do mundo, não consegue firmar-se, é um barco oscilante com seu timão descontrolado. O Palmeiras continua no exílio: cresce, promete que voltará, mas seu desterro na série B continua amargo, apesar das vitórias. É um gigante encurvado, todo constrangido num espaço em que não cabe.
O Atlético Mineiro, depois de colher os louros da Libertadores, empoleirou-se numa gangorra, feito um galo tonto. O Internacional vai e vem, às vezes parece mais um provinciano perdido no vasto mundo, sentindo-se estrangeiro em todo lugar. O Grêmio está melhor, até chegou ao batalhão da vanguarda – porém ainda não provou que merece plena confiança. É fácil reconhecer seus torcedores pelos dedos sempre cruzados.
O Bahia deu um pique admirável e depois imobilizou-se, com jeito de enfeitiçado; agora luta de novo para vencer o quebranto. O Vitória, embora mais aprumado no momento, sofre também de mandinga incerta. O Coritiba se sustenta com a magia ancestral de Alex. O Santos se deixa profanar, depois se eleva, fica instável entre o céu e a terra, precisa de reza o tempo todo. Em suma, é um panorama perturbador: grandes equipes se agitam zonzas, tonteadas pelo giro implacável da roda da fortuna, que neste torneio parece controlada por um demônio gozador, de estranhos humores.
Há boas novas, claro. O Atlético Paranaense mostra harmonia, classe, um vigor inspirado. A estrela do Botafogo cintila, iluminando bela trajetória. E a celeste raposa segue altiva, sob o rico esplendor de sua constelação. Torço para que eles não vacilem, pois o caminho a trilhar é longo, áspero, conturbado, cheio de armadilhas. Impossível dizer o que virá na fase final. Os estropiados podem levantar-se e fazer papel de malabaristas no pátio dos milagres desse campeonato. Os grandes do momento devem vacinar-se com humildade, aplicação e capricho: os soberbos sempre correm risco de cair. Não raro se verifica no futebol a sentença de Marx: às vezes o que é sólido se desmancha facilmente no ar dos estádios.
Sim, tudo é possível numa competição em que craque velho e craque gordo se destacam, fantasmas assombram os campos, massagista vira goleiro, episódios bizarros se sucedem. Nesse contexto, há jogos que provocam enjoo, azia, estômago embrulhado; há outros que matam de sono; mas também há partidas espetaculares, inesquecíveis.
Foi eletrizante o embate entre Cruzeiro e Botafogo. O placar não traduz o que se passou em campo. A raposa teve melhor desempenho, é certo; criou mais oportunidades e aproveitou algumas com perfeição, foi astuta e ferina, portanto mereceu a vitória. A sorte também a ajudou: a Dama Fortuna, diziam os antigos, tem preferência pelos mais fortes. Notem bem: quase sempre. (Ela adora um quase). Os méritos do Cruzeiros são inegáveis, porém a verdade é que o jogo dos líderes esteve equilibrado por muito tempo. O Botafogo criou muitos lances de perigo, foi valente e arrojado. Só depois do pênalti perdido por Seedorf a equipe carioca sentiu o golpe e ficou mais vulnerável, espicaçada pela ansiedade. Sua torcida pode lamentar-se, mas não tem porque desanimar. O time do Rio também mereceu aplausos, não só pelo espírito de luta como pela qualidade que mostrou. O espetáculo foi bonito, esplêndido. Os dois adversários se revelaram dignos de profundo respeito. Mostraram que são mesmo grandes candidatos ao título. Não os únicos, por certo: há outros que crescem na sua cola e surpresas podem acontecer, como acima indiquei.
Já o tombo recente do Flamengo diante do Atlético Paranaense foi dramático. Pode ilustrar o que desde Aristóteles os especialistas em teatro chamam de peripécia – digna, no caso, de uma bem construída tragédia: não lhe faltou a chamada ironia trágica. O rubronegro começou de modo fulminante, marcando gols bem no início da partida e dominando de forma soberana por algum tempo. Nos primeiros dezoito minutos, parecia arrasador. Alcançou um zênite: chegou perto de marcar gols por mais duas vezes. A vitória lhe sorria. Só que o brilho do triunfo anunciado logo se dissipou. O entusiasmo inicial da torcida descambou por escabrosa ladeira: escorregou miseravelmente, entre alamedas de pânico, da euforia para a depressão. Que logo deu lugar a xingas e protestos, acendeu o furor da massa desolada. Eurípides aplaudiria uma trama assim.
Claro está que o adversário foi muito responsável por essa tremenda mudança: o Atético Paranaense é o tipo do time perigoso: um conjunto bem armado e consciente de sua força, que não se deixa abater. Foi duro, enérgico, determinado. Mostrou resistência tenaz quando parecia derrubado por golpes esmagadores; emergiu da blitz que lhe foi imposta com uma firmeza a toda prova. E revelou-se implacável no seguimento do jogo. Contra o que seria de esperar, foi o fogoso Flamengo quem perdeu as forças. A insegurança demonstrada por sua equipe no segundo tempo só fez crescer, imitando a fraqueza que inibe o paciente de um pesadelo.
Como explicar esse fenômeno? É um caso para estudo. Reflete uma situação que, a meu ver, transcende arranjo tático, estratégia de jogo, técnica. A expressão patética de Mano Menezes no fim do jogo me impressionou, lembrava uma máscara trágica. É verdade que seu trabalho na Gávea não rendeu, não trouxe resultados; mas não creio que lhe caiba toda a culpa por esse fracasso, pela tremenda instabilidade do time. Não bastará substituir o técnico para que o problema se resolva. A raiz do mal me parece mais profunda; tem a ver com a desorganização do clube, o caráter errante, descoordenado e caótico de sua política de futebol.
Mas isto não se passa somente com o Flamengo. O mesmo desarranjo se verifica em muitos grandes clubes brasileiros. O panorama que pintei no começo deste artigo sugere que não se trata de situações isoladas, singulares. Há um desconcerto geral. Isso com certeza tem a ver com fatores estruturais, não só com determinadas conjunturas. A má gestão tem sido regra nessas agremiações esportivas, que sofrem com a pirataria interna, garantida pela eterna falta de transparência na administração.
De resto, o problema não se limita aos clubes, nem os alcança a todos da mesma forma. O caciquismo insano forma triste cadeia de desatinos e rapinagens, uma rede que se enlaça na obscura trama da CBF, vampirizada durante longo tempo pela dinastia dos havelanges e seus epígonos. Entre os muitos fatores que têm contribuído para degradar o nosso futebol, não poucos têm a ver com essa entidade tenebrosa. Basta que se pense, por exemplo, no desenho irracional dos calendários esportivos. As obscuras transações que ligam os clubes em eterno risco de insolvência a empresários gananciosos se veem habilmente blindadas pela esperteza dos cartolas. O governo se omite e se acumplicia, deixa que a picaretagem prospere nesses domínios, pois não se interessa efetivamente pelo esporte nacional. Temos um Ministério dito dos Esportes sem qualquer vislumbre de política esportiva. O futebol brasileiro não é tratado com seriedade pelos nossos governantes, que muito contribuem para diminui-lo com medidas burras e perversas – haja vista a nova privataria das arenas.
É claro que fatores conjunturais também pesam. Há diferenças significativas entre as vária situações de crise vividas por nossos clubes. Mas é impossível negar a extensão da buraqueira, da praga que a tantos atinge. É um erro atribuir a oscilação das equipes pura e simplesmente a burrice dos técnicos, falta de vontade dos atletas, ausência de talentos. Ela se enraiza na ganância e no descaro da cartolagem, que ninguém controla. O futebol brasileiro precisa mesmo é de democracia, transparência, controle social, administração correta. Carece também de uma política esportiva séria, que nossos governantes não se mostram capazes de implementar.